Criada em novembro de 2023, a bancada negra da Câmara dos Deputados — formada por 135 dos 513 parlamentares — avalia que o Congresso vive um momento decisivo para incorporar à Constituição Federal (PEC) um fundo permanente voltado à reparação econômica e à promoção da igualdade racial.
A iniciativa, inédita na dimensão e no alcance, avança com a PEC 27/2024, que estabelece o Fundo Nacional de Reparação Econômica e de Promoção da Igualdade Racial (FNREPIR), estimado em R$ 20 bilhões.
A avaliação é do relator da proposta, deputado Orlando Silva (PCdoB-SP). Segundo ele, três fatores se alinharam para permitir que a pauta avance: a aproximação entre parlamentares de esquerda e de direita, o respaldo científico de pesquisas que evidenciam desigualdades raciais e o objetivo de ampliar as condições de empreendedorismo entre pretos e pardos.
Avanço legislativo e maior consenso político sobre a PEC
A PEC 27/2024, apresentada pelo coordenador da bancada negra, deputado Damião Feliciano (União Brasil-PB), já superou a primeira etapa de tramitação ao ser aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ). O texto deve ser votado pela comissão especial na próxima terça-feira (25), antes de seguir para o plenário, onde não há prazo definido para apreciação.
O relatório de Orlando Silva, que inclui ajustes ao texto original, foi protocolado na quarta-feira (19) e se tornou a prioridade da bancada negra. Ele destaca que a atual legislatura criou um ambiente mais favorável ao diálogo sobre igualdade racial.
“O que tem de diferente nessa legislatura é que conseguimos criar um ambiente de diálogo entre a esquerda, o centro e a direita em torno da agenda de promoção da igualdade racial. Isso não existia antes. Essa agenda era tratada como uma coisa da esquerda”, afirma o relator.
Para ele, a mudança de postura decorre do acúmulo de dados e estudos confiáveis sobre desigualdade racial, que ajudam a qualificar as discussões e afastam o debate de uma disputa ideológica.
“Você não fica apenas no debate político ideológico, e sim faz o debate de evidências”, diz.
Tentativas anteriores e foco na emancipação econômica
Nos últimos 35 anos, o Congresso analisou ao menos cinco projetos de lei e três propostas de emenda constitucional que buscavam criar mecanismos permanentes de financiamento para políticas de igualdade racial. Todas foram arquivadas ou permaneceram, nas palavras de Damião Feliciano, “quase invisíveis”.
A PEC em análise pretende, segundo seus autores, atuar sobre a dimensão econômica da desigualdade racial — área que avançou pouco em comparação às mudanças institucionais registradas nos últimos anos. Orlando Silva vê o fundo como uma ferramenta necessária:
“A luta antirracista no Brasil está evoluindo mais no plano institucional do que no plano real. Os dados econômicos e sociais melhoraram um pouco, mas muito pouco. Se olharmos os dados de violência, por exemplo, a violência contra a população negra é mais brutal ainda. Na vida real das pessoas, na economia e na sociedade, sobretudo em trabalho, renda e violência, o Brasil deve muito ao povo negro.”
Como funcionaria o fundo de reparação
O FNREPIR teria vigência inicial de 20 anos e receberia aporte anual fixo de R$ 1 bilhão da União, valor que não entraria no cálculo da meta fiscal. O fundo seria supervisionado por um conselho deliberativo composto por representantes do poder público e da sociedade civil.
Além do repasse federal, o fundo poderia ser abastecido por condenações judiciais envolvendo racismo e trabalho análogo à escravidão, doações nacionais e internacionais e contribuições de iniciativas públicas ou privadas de reparação histórica.
Para Orlando Silva, o caráter temporário é fundamental: “Esperamos que em 20 anos a gente tenha avançado.”
A proposta também prevê que estados e municípios possam criar fundos próprios e receber recursos diretamente do fundo nacional, reforçando o caráter descentralizado das políticas de igualdade racial.
Empreendedorismo como ferramenta de igualdade
Entre os pontos discutidos na comissão especial está a utilização do fundo para estimular o empreendedorismo de negros e negras. A justificativa da PEC indica que essa estratégia ajudaria a reduzir assimetrias históricas e a ampliar a inserção de pretos e pardos na economia.
Orlando Silva aponta que essa abordagem também ajuda a aproximar setores políticos que tradicionalmente divergem sobre políticas sociais.
“Isso, inclusive, ajuda a mitigar a polêmica entre esquerda e direita. Muitas vezes, os conservadores da direita falam que a esquerda só quer saber de política social, mas tem que ter liberdade econômica.”
Ações afirmativas e transversalidade das políticas
A PEC altera a Constituição para estabelecer que combater o preconceito e promover a igualdade racial são deveres compartilhados entre Estado e sociedade. A proposta também eleva a igualdade racial ao status de direito fundamental, que demanda ações afirmativas e políticas públicas permanentes.
As diretrizes devem envolver diversos ministérios, além de governos estaduais e municipais. O texto menciona expressamente o reconhecimento das religiões de matriz africana e as comunidades quilombolas como áreas de atuação prioritária.
Composição da bancada negra
A bancada negra não exige filiação formal. São considerados integrantes todos os parlamentares que se autodeclararam pretos ou pardos ao registrar suas candidaturas — requisito que também garante aos partidos a obrigação de destinar 30% dos fundos eleitoral e partidário a candidatos negros.
A composição é diversa, e alguns membros reconhecem que muitos colegas podem não se identificar como negros fora do contexto eleitoral. Ainda assim, o bloco tem atuado para ampliar sua influência política, inclusive com assento no colégio de líderes da Câmara, órgão responsável pela definição da pauta de votações.
Fonte: Folha de São Paulo
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