Os óbitos associados ao álcool cresceram em razão da pandemia, apontam pesquisadores
Em um relatório da Vital Strategies, a partir de dados extraídos do SIM (Sistemas de Informações sobre Mortalidade), do Ministério da Saúde, foi possível traçar o percentual sobre o aumento de óbitos associados ao álcool na cidade de São Paulo.
A capital paulista apresentou uma alta de 156,3% nas mortes por transtornos mentais ou comportamentais provocados pelo uso de álcool. Já no Estado, o índice foi de 64,5% e no Brasil, de 18,4%.
Óbitos associados ao álcool em SP
Apesar de nos últimos dez anos ter havido uma queda ou estabilização das mortes por transtornos mentais e comportamentais relacionados ao uso de álcool, este índice subiu novamente entre 2019 e 2020, ano em que começou a pandemia de Covid-19 no Brasil. Apenas no estado de São Paulo, as mortes decorrentes do uso excessivo de álcool saltaram de 690 para 1.135 e, no Brasil, de 6.428 para 7.612.
De acordo com Luciana Sardinha, epidemiologista e pesquisadora da Vital Strategies, há duas principais hipóteses que podem explicar esse aumento dos óbitos por transtornos associados ao uso do álcool no ano passado.
A primeira delas é a pandemia que impactou a saúde mental de muitas pessoas e, consequentemente, levou à elevação do consumo de álcool dentro de casa.
A segunda hipótese é que muitos doentes crônicos descuidaram da saúde ou não tiveram acesso a serviços específicos para o acompanhamento de rotina. Por exemplo, a junção de uma diabetes descompensada ou um problema cardiovascular com o consumo abusivo de álcool, aumenta o risco de morte.
De acordo com dados da Glic, plataforma de telemedicina que dá suporte a diabéticos, em março de 2020, 5% dos usuários registrou ingestão de álcool. E em outubro, o percentual saltou para 20%.
Sobre isso, Sardinha explicou:
“A gente também imagina que muitos casos que já vinham sem controle podem ter se exacerbado durante a pandemia. Mais sedentária, bebendo mais e sem tratamento, a pessoa veio a óbito.”
Mais da metade (57,2%) das mortes por transtornos relacionados ao álcool era de pessoas entre 45 e 64 anos.
Falta de acesso a psicólogos e psiquiatras
Além disso, muita gente não encontrou canais para trabalhar sentimentos abalados durante a quarentena. Isso inclui a falta de acesso a psicólogos e psiquiatras. Para a psiquiatra Ana Cecília Marques, coordenadora da comissão de dependência da Associação Brasileira de Psiquiatria:
“As pessoas ficaram mais preocupadas, tensas, irritadas, com medo, com dificuldade de dormir.”
Ela afirma que cresceu o consumo de todos os tipos de bebidas alcoólicas neste período.
“Quem já bebia passou a beber mais e com mais frequência. Muitos homens que não bebiam passaram a beber e a convidar a esposa para beber junto. E quando associam o álcool a sedativos, vira uma bomba atômica.”
Relatório sobre óbitos associados ao álcool deixou de fora doenças crônicas
Contudo, Sardinha destaca que a situação é muito pior que a indicada no relatório. Isso porque ficaram de fora doenças crônicas diretamente relacionadas ao alcoolismo. É o caso da cirrose, além de outros 200 agravos, como doenças cardiovasculares e câncer.
Por outro lado, dizer que o álcool ataca somente o fígado não é correto. É o que explica o Dr. Sérgio Mies, gastroenterologista e especialista em hepatite alcoólica. O médico diz que o consumo de álcool em excesso pode atingir, além do fígado, o pâncreas e o coração. A pessoa compromete estes três órgãos numa proporção de mais ou menos um terço para cada uma delas, ou seja, 33% para cada órgão. Além disso, ele salienta que para provocar uma doença hepática, o homem tem que beber pelo menos 80 gramas de álcool por dia e durante pelo menos dez anos para ter o risco de ter uma doença hepática crônica por causa do álcool. Mas se parar por uma semana ou um mês, ele já consegue alterar “radicalmente esses tempos”. No caso da mulher, ela precisa ingerir 60 gramas de álcool, ou seja, ela é um pouco mais sensível ao álcool.
Já a faixa etária em que aumentou mais o consumo de álcool foi entre 18 e 34 anos, diz Sardinha.
“É a faixa economicamente ativa. E a gente sabe as consequências disso a médio e longo prazo: mais doenças e mais impactos na economia.”
Aumento do consumo entre as mulheres
Houve uma alta no consumo de bebidas alcoólicas entre as mulheres. É o que revela dados do Vigitel, sistema de vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico. A pesquisa apontou que entre 2006 e 2019, houve aumento de 70,5% desse grupo, afirma Sardinha.
“A experimentação precoce de uso de álcool já está quase igual entre meninos e meninas. Antigamente existia uma enorme diferença [com meninos começando antes].”
Secretaria Municipal da Saúde
Em nota, a Secretaria Municipal da Saúde diz que o alcoolismo não pode ser analisado apenas pelo código F10 da CID (Classificação Internacional de Doenças). Estes são casos em que o atestado de óbito registra o consumo de álcool como a causa básica da morte. E ela foi utilizada no levantamento da Vital Strategies. Sendo assim, a pesquisa só considerou os óbitos por transtornos mentais e de comportamento associadas ao uso de álcool.
Para a secretaria, a hepatopatia alcoólica, código K70 da CID, é mais informativa. Isso porque ela mostra o alcoolismo e também evidencia que é no fígado a manifestação que levou a pessoa à morte.
Programa de Aprimoramento das Informações de Mortalidade
Conforme dados do Proaim (Programa de Aprimoramento das Informações de Mortalidade), em 2020 foram registradas um total de 643 mortes decorrentes do consumo de álcool. Só a doença alcoólica do fígado foi a causa de 419 óbitos. Na sequência aparecem os transtornos mentais de comportamento, com 205 mortes. A nota diz ainda.
“Não é possível analisar o alcoolismo sem levar em consideração suas diversas manifestações específicas [hepatopatia e pancreatite, entre outras]. Nas regras de seleção da causa básica da morte, sempre que houver referência ao problema específico, este é priorizado em relação ao termo genérico.”
As informações de 2019 a 2020 ainda estão sendo analisadas e corrigidas pelo Proaim, pois estão inferiores à média histórica, que sempre registrou média de 800 mortes. Segundo a secretaria, no ano passado é possível que tenha causas anteriormente referidas como casos suspeitos de Covid-19, que não foram confirmados e que podem estar associadas ao alcoolismo.
*Foto: Reprodução/Pexels